domingo, 14 de junho de 2009

Qual é a sua rede? Uma pesquisa etnográfica.


A rede de dormir é um tipo de leito indissociável da vida de um paraense. Ao escolher uma casa ou apartamento para morar, analisamos imediatamente o local mais apropriado, aconchegante, sombreado, para colocá-la e fazemos até a medição “na cabeça” do tamanho da rede que vai caber naquele espaço, pensamos na escápula mais forte e na inclinação, pra que as pessoas possam passar por ela sem bater. É muito desagradável quando alguém esbarra na sua rede. Aquele será um espaço quase sagrado, destinado a diversos fins como leitura, repouso, momento de reflexão, alívio do calor, sexo vespertino e também noturno e muitas outras atividades que nossos ancestrais indígenas nos deixaram como herança. Não é todo mundo que sabe dormir de rede, não! Quem não souber, acorda de torcicolo ou com a espinha torta.

Cada um tem com sua rede uma relação muito parecida da criança com aquele ursinho de pelúcia fedorento, ou aquele paninho q fica preso na chupeta, encardido e desfiado, mas que se for esquecido, perturba o sono de toda uma família. O modo como se tratam os punhos da rede é motivo de desavenças e mau-humor, mexer no punho é algo semelhante a usar emprestada uma peça íntima sem pedir licença, ou seja, ainda que você peça, será algo desagradável. Ninguém gosta de emprestar rede. Ela guarda os cheiros, os segredos, a energia. Se eu te convido para deitar na minha rede é porque você é alguém considerado especial.

O uso da rede para dormir é bastante antigo, é um costume herdado dos indígenas brasileiros. Eles chamavam a rede de ini. Foi em 27 de abril de 1500 que Pero Vaz de Caminha chamou pela primeira vez de rede de dormir. No livro Casa Grande e Senzala, Gilberto Freire relata muitas historias com melancolia quando “pequenos adormeciam ouvindo o ranger tristonho dos punhos da rede”.

Passei o maior sufoco quando meu caçula nasceu. Ele só dormia em rede. Acontece que eu morei num apartamento em que a escápula rangia, sabe aquele trrrrr, trrrrr... não havia óleo que desse um fim naquele ronco. Abaixo de nós havia um professor de francês muito mau-humorado que costumava trocar o dia pela noite. Eu embalava o pequeno por volta do meio dia para tirar uma sesta e também à noite, e num certo domingo, o professor recalcado me ameaçou de morte. Fomos parar na delegacia por causa da rede. Numa viagem que fiz com meu pequeno, não havia rede no hotel, no que ele, ainda sem saber falar, se encostou junto à parede, colocou o dedo na boca feito chupeta e se embalou, mostrando para mim do que estava precisando. Inventei um tipo de embalo manual, que contribuiu para esses problemas de artrose que tenho hoje.

Quando criança eu inventava dezenas de brincadeiras na rede, umas fantásticas em que trançava as pernas nas varandas, como aquela brincadeira que fazemos com fios nas mãos, trançando em dezenas de formas geométricas e subitamente, desalinhando-as, como se fosse um tipo de mágica. Outra muito gostosa era ficar se enrolando na rede e rodando, nos embrulhando como um bombom ou uma múmia. Outras eram ingenuamente sexuais, como torcer a rede e esfregar-se nela como se estivéssemos montando a cavalo, mas é claro que o movimento era instintivamente delicioso. E tinha o campeonato de embalar, para ver quem se embala com mais força e vai mais alto. Algumas vezes a queda era inevitável, noutras, eu me exibia de ter um talento de ginasta para saltar do alto no chão, e cair em pé, vejam só que perícia! Já caiu de rede? É uma porrada seca na bacia. Bem, pelo menos ela bate primeiro, depois que vem a cabeça, mas quando se está num sono suspenso, é como acordar de um sonho em que se estava voando. Cair quando há superlotação é mais legal, a gente vai sentando de um a um, até ver quantos cabem, e de repente, o punho rasga ou a escápula quebra. É muito engraçado, dá crise de riso e às vezes a gente até molhava as calças. Depois a gente vai crescendo e aprendendo outras formas criativas de usar a danada.

Quando a gente ía pro interior a primeira coisa que eu fazia era escolher o lugar da minha rede, aí eu enfiava dentro dela o meu lençol, a minha escova de dente, minha toalha e uma calcinha. Enrolava com a técnica que conhecemos muito bem e prendia dentro do punho. Pronto, ninguém podia me tirar dali. Todos respeitavam.

Hoje eu olho pra todo lado e não vejo rede, quando ela aparece é quase a visão de uma obra de arte. Quando eu vejo uma varanda ventilada, um parque bonito, um lugar na serra com duas frondosas árvores e aquela distancia estratégica, penso logo: Ah, uma rede ali!

terça-feira, 9 de junho de 2009

Amor é apenas um roteiro?


Belém, Pará. Sábado, 6 de junho de 2009. Tomava um café com minha bisavó de 89 anos, enquanto ela me confidenciava que tivera uma discussão com meu bisavô (a essa altura contam 70 anos de casamento), pois, ele ainda queria desfrutar de sua admirável disposição sexual, aos 93 anos, enquanto ela com sua intimidade já atrofiada e castigada pelo parto de 11 filhos, além de sua frágil capacidade pulmonar, não concebia qualquer possibilidade de ceder aos apelos do seu “velho”, no que ele disse bem contrariado: “Bem que minha mãe dizia que no final da vida eu não ia ter mulher”. Ela respondeu, com sua voz angelical e naquele instante, profética como uma deusa: “Você tem mulher sim, e terá até que eu morra”.

Já há alguns meses eu refletia sobre a maturidade nos relacionamentos e sobre como as relações se transformaram ao longo desses anos, dificultando o sentimento que a cada dia se torna, apenas, uma página de livro. O amor romântico acabou? Eu pensava que sim. Que isso era um gênero de literatura apenas e então eu me apaixonei pelo ideal de amor. Mas ao reencontrar esse casal, que há cinco gerações vem construindo e conservando esse bicho estranho, incômodo, desafiador, penso que talvez eu tenha o privilégio de ser testemunha de algo que confirma a possibilidade de acreditar e até mesmo, de viver um grande e verdadeiro amor.

Parece que a necessidade de amar foi substituída pela reflexividade como condição para definição dos limites pessoais a fim de preservar a individualidade. Em outras palavras, as pessoas agora querem crer: "melhor estar só do que bem acompanhado". O descompromisso como um troféu, uma vitória. Eu confesso que muitas vezes já me vangloriei de ter aquela cama imeeeeensa só pra mim, de poder dormir sem escovar os cabelos ou mesmo com aquele sortinho desbotado de água sanitária. Mas aí me lembro de como é bom pensar pra mim e pra ti. Brigas e bicos. Risadas e dengos. Sorvete no domingo. Chamego na rede. Dormir de conchinha. Sexo no meio da madrugada quando os corpos se encaixam e outras coisas também. Sou velha como minha bisavó. Acredito no que já acabou. Todo o resto pode acabar. O amor permanece em mim, como um fio condutor, pois, como ela disse, foi o único legado que Ele nos deixou (minha bisavó é muito religiosa). O amor existe e eu vou ao encontro dele em águas profundas, como uma sereia indomada e solitária, e se encalhar, será sob ele, ainda que ele esteja há muitos quilômetros de distância, ainda que ele seja apenas um roteiro.