domingo, 15 de março de 2009
Que música é essa?
Cada vez que levo alguém para sair contribuo para manter o meu prazer de escutar Jazz e assim, contaminar mais uma pessoa para que faça parte dessa casta de ouvintes e apreciadores. O que antes era um hábito solitário, que sempre ocorria quando o último a sair fechava a porta, seja do carro ou do recinto, tornou-se elemento didático que se incorporou aos momentos em que idas e vindas a algum lugar se transformaram em inesquecíveis apresentações de gênios como Duke Ellington, Charles Mingus, Charlie Parker, Louis Armstrong, entre outros imortais do jazz. Didático sim, porque sempre vem a pergunta, “que música é essa?”
Fui apresentada ao jazz em dois momentos distintos e significativos de minha vida, o primeiro aos 13 anos, com os antigos vinis da melancólica Billie Holliday e da lírica Sarah Vaughan, entre outros Standards inesquecíveis; o segundo momento foi aos 30 anos, durante apresentações de um jazz mais moderno, comercial, em palcos abertos e gigantescos para um público não pagante, volumoso e heterogêneo. O jazz foi ressurgindo no meu universo com audições de gravações raras que me foram apresentadas por alguém igualmente raro.
Como aprendiz de cantora, passei a desafiar a mim mesma estudando a forma, divisão, os compassos do jazz para sentir o que nenhum ouvinte consegue abstrair. E digo com segurança que é impossível compreender o que se passa durante a execução de um tema não estando entre aquela polifonia. Transportar-se para esse universo sem ser músico é privilegio de ouvintes de extremo bom gosto e refinada audição.
O jazz não é reprodução, é criação. Nunca se consegue tocar ou cantar a mesma canção da mesma forma e é essa emoção que se imprime no jazz o que o torna tão único e irretocável. Quem descreve muito bem esse fenômeno é o historiador Eric Hobsbawn em seu livro “A História Social do Jazz”, quando se refere ao saxofonista Charlie “Bird” Parker: “Ele foi um revolucionário da música, cujas idéias dominaram praticamente tudo o que já foi escrito em jazz moderno desde o início dos anos 1940. Ele também foi uma alma vulcânica, cujas erupções jorravam, e ainda jorram, arrepios de admiração pela espinha de ouvintes e músicos”. (Hobsbawn, 1917, p.164)
Então esse texto é uma singela e resumida resposta a pergunta. O primeiro estilo identificável de jazz surgiu em 1890 em St. Louis com o ragtime, criado por pianistas solistas que tocavam de forma sincopada. New Orleans foi o lugar onde o jazz acelerou a tendência mais fortemente. Lá surgiu a primeira banda de Buddy Bolden (1900) e as demais que o difundiram, viajando pelas cidades dos Estados Unidos. Em 1950 o jazz já havia conquistado o mundo. Vejam que não foi tão fácil a explosão como acontece hoje com “artistas” produzidos pela mídia e que não têm, necessariamente, talento algum.
Alguns eternos clichês geralmente servem para explicar suas origens, tais como, “de que o jazz nasceu do lamento de negros oprimidos”, ou de que “os brancos lucraram com o talento de negros”. Percebi isso ao ler a biografia de Billie Holiday em que ela conta que precisava se esconder no quarto do hotel e surgir apenas no palco, para não causar constrangimento a outros hóspedes. Ou mesmo diante da emblemática história de Bessie Smith, que morreu por omissão de socorro em um hospital para brancos. O fato é que a maior conquista do jazz desde a sua criação foi desenvolver uma linguagem popular ao mesmo tempo em que criava uma música sofisticada e além de tudo, não se deixar sucumbir às tendências comerciais.
O jazz se originou do uso de escalas da África Ocidental e de algumas misturas de escalas africanas com harmonias européias como a escala blue (escala maior (harmonia) com a terceira e sétima abemoladas). Outro elemento africano de grande importância no jazz é o ritmo constante e uniforme que organiza a música (2 ou 4 por compasso).
Alguns músicos de Jazz da atualidade tentam sobreviver fazendo uma música avant garde direcionada, inevitavelmente, para músicos (em grande maioria de formação erudita) e para boêmios brancos e também para uma cota de cultos e intelectuais. Foi o que percebi cantando em um clube de Jazz em Belém do Pará. Essa iniciativa, por si só, já é uma vitória memorável diante da atrofia da audição provocada pela Indústria Cultural, já citada por Theodor Adorno em seu texto “O fetichismo na música e a regressão da audição” (1983). Às mesas estavam sentados músicos, professores universitários, intelectuais. Quando uma execução se iniciava, todos calavam, quando terminava, todos aplaudiam. Quase um milagre!
Também Hobsbawn explica essa dificuldade em formar público de jazz. “A cultura popular atual, nos países urbanizados e industrializados, consiste em entretenimento comercializado, padronizado e massificado, transmitido pelos meios de comunicação como a imprensa, a televisão, o cinema e todo o resto, produzindo empobrecimento cultural e passividade: um povo de espectadores e ouvintes, que aceita coisas pré-empacotadas e pré-digeridas” (Hobsbawn, 1917, pg.40)
Cantar, e principalmente tocar jazz depende de uma execução individual extremamente técnica, mas também sensível, em que cada músico imprime sua personalidade, explorando de forma artesanal e até os últimos recursos os instrumentos, inclusive a voz. Entre os cantores, tanto faz se utilizam o vibrato quanto um som mais sujo. No jazz ambos são considerados legítimos e limpos. O que interessa é o desempenho de cada músico individualmente, como solista e suas improvisações. Muitas canções eram criadas nos minutos restantes que faltavam para concluir o tempo de gravação de um disco. Arranjos, escalas, harmonias, tudo era executado de forma genialmente improvisada e não escrita, como aliás, é a característica do jazz. E por trás de tudo isso, tendo como base o lamento do blues, uma poesia de protesto. Se o jazz se afasta do blues, perde a sua essência, já dizia em outras palavras o mestre Duke Ellington.
O fã de jazz não usa ‘abadá’, não fala mais alto do que a música, não a utiliza como trilha de fundo para coreografia. O fã de jazz é predominantemente masculino e estuda, analisa, discute, acaricia, se embriaga, tem reações orgásticas ao escutar um tema, e hoje em dia, é só mais um entre tantos solitários a se proteger do analfabetismo musical. Mas o fato é que ouvir, cantar ou tocar jazz já é, por si só, (me perdoem o que pode parecer pedantismo) uma capacidade superior de gosto, intelectualidade ou técnica.
ps. Foto: A diva Billie Holiday, atrás dela o mestre Duke Ellington.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
simplicidade e simplificação são coisas bem diferentes. simplicidade é conquista formal de mestres como Mário Quintana e Manuel Bandeira. Simplificação é empobrecimento, é como ouvi do professor Benedito Nunes certa vez: "Os professores hoje tem a prática de facilitar tudo para os alunos. Que educação é essa?". Isso vale para o jazz, e outras músicas de fundo clássico, ou seja, de virtuoses: existe um muro produzido pela facilitação ao ouvido, e o complexo fica inacessível. acontece que foi o complexo que nos levou à lua e decupou o genoma humano. no fundo, a questão é que nosso tempo é pobrinho, pobrinho, banalizante do pensamento e da vida em geral.
ResponderExcluir