domingo, 4 de abril de 2010

De onde vêm as sapatilhas de balé?


Eu ouço as pessoas falarem de tradição, ultimamente, e vejo a movimentação dos cerimoniais, e não posso deixar de publicar esta resenha, apresentada à Candido Mendes, como uma indicação de leitura aos que tiverem interesse em saber melhor a respeito da origem e da invenção das tradições*. Enquanto isso, fico na ponta dos pés, para ver melhor!

No livro “A invenção das Tradições”, Hobsbawm e Ranger propõem o estudo do surgimento das tradições nas sociedades, ora como comportamentos inventados, construídos e institucionalizados, ora como estabelecidos sem a certeza das origens ou de como surgiram pela primeira vez, assim como, o que os explica.
Junto a outros pesquisadores e historiadores, Hobsbawm explica a origem de diversas tradições como o saiote kilt da Escócia – país campeão na invenção de tradições - entre outras das Terras Altas; a decadência e morte das tradições no País de Gales, que Hugh Trevor-Roper diz ser: “um exótico fim de mundo onde aristocratas que mal tinham o que vestir desfiavam intermináveis árvores genealógicas que partiam de Enéias de Tróia, uma região irremediavelmente atrasada” (p. 55).

No capítulo Contexto, execução e significado do ritual: a monarquia Britânica e a “Invenção da Tradição”, David Cannadine chama os cerimoniais monárquicos da Inglaterra de verdadeiros espetáculos de tão competentes e eficientes que são e explica que os sociólogos se ocuparam do estudo desses cerimoniais partindo de uma perspectiva durkheimiana (funcionalista) à medida que seus significados reforçam valores no povo. O significado destas cerimônias é, portanto, neste capítulo, o objeto de estudo principal.

A principal tese do livro - as “tradições inventadas” – são aprofundadas no capítulo “A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914”, em que Hobsbawm define como comportamentos que obedecem a regras aceitas e internalizadas pelo senso comum e, que são de natureza ritual ou simbólica, sempre com a finalidade de instituir normas de comportamento e outros valores morais, criando uma ligação com o passado seja para validar a “tradição” em questão, seja para dar continuidade a algo que teve um episódio no passado, por isso mesmo essas tradições geralmente estabelecem, segundo o autor, que quando uma tradição se refere a uma época determinada, tende a ser uma continuidade da história que não parece natural, uma vez que essa referência institui a repetição imprescindível dos comportamentos.

Este tema tem ocupado diversos estudiosos, justamente, pelo contraste entre os novos comportamentos do mundo moderno e pósmoderno e a realidade em que essas tradições surgiram como tentativa de tornar eternos certos valores da sociedade.
Entre “tradição” e “costume” deve-se estabelecer uma diferença, pois, nas sociedades predominantemente tradicionais, a principal característica é a invariabilidade, ou seja, não há mudança nem adaptação. Já os costumes não conseguem resistir nem impossibilitar as inovações, ainda que sempre encontrem uma forma de estabelecer um comprometimento histórico.

Para exemplificar esse processo, o autor explica que no exercício da magistratura, o ofício em si é a “tradição”, já os acessórios tais como peruca, toga e demais rituais que compõem sua atuação, fazem parte da “tradição inventada”. Observando as tradições criadas a partir da Revolução Industrial temos categorias que se superpõem: “as que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status, ou relação de autoridade, e aquelas cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento” (Op. Cit., p. 17).


Hobsbawm se apoiou na antropologia para estabelecer as diferenças entre o que foi inventado e os costumes tradicionais e verificou que há uma diferença notável entre essas práticas, sendo as mais antigas de caráter coercivo e as “inventadas”, sem valorização de valores morais, direitos e obrigações, e assim, não cumpriu o papel de ocupar uma lacuna da decadência das tradições antigas, especialmente nos séculos XIX e XX, em que as sociedades modernas conferem pouca ou nenhuma importância a elas, só tomando consciência, por exemplo, da cidadania, diante de símbolos.

Cerimônias públicas foram inventadas e a mais importante delas aconteceu a partir de 1880, com o Dia da Bastilha em uma fusão de manifestações oficiais e não-oficiais e festas populares e, a partir de então a “tendência geral era transformar a herança da Revolução como expressão conjunta de pompa e poder do estado e da satisfação dos cidadãos” (p. 279). As “tradições inventadas” têm funções políticas e sociais, mas é preciso que observemos em que medida elas podem ser manipuladas.
A produção em massa de monumentos públicos, sempre imponentes, entre edifícios e estátuas, que por sua vez, ajudam na interpretação da história, como ocorreu na Alemanha com o Niederwald, em comemoração à unificação do país e o novo edifício do Reichstag, com metáforas históricas na fachada entre outros tantos símbolos. Precisamos identificar ainda a distinção entre “tradição” e “convenção da rotina”; esta última sem qualquer função simbólica nem ritualística “a gerar um certo número de convenções e rotinas, formalizadas de direito ou de fato, com o fim de facilitar a transmissão do costume” (p.11).

Quando comportamentos e rotinas não têm caráter ideológico, explica o autor, não podem ser consideradas “tradições inventadas”, ainda que estas últimas sofram interferências, como por exemplo, a Igreja católica, que se adequa a um novo público composto pelos fieis; e instituições como o exército que, hoje já recebe mulheres em sua corporação. Outras práticas tradicionais como as de folclore e cultura popular também sofreram modificações em vista de outros novos propósitos, inclusive nacionalistas.

A importância desse estudo, para o autor, perpassa a história das sociedades e suas relações atuais com o passado, uma vez que as tradições, quando inventadas, fazem uso da história para poder legitimá-las, especialmente porque elas têm implícito um interesse predominantemente nacionalista, porque sempre desenvolveram papel fundamental na manutenção das sociedades como ocorreu com os regimes monárquicos, que salvaguardaram algumas nações contra o socialismo e a direita.


Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 2009.

* Resenha do livro: A Invenção das tradições, organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger – tradução de Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 5ª edição, 2008.

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